Há quem diga que a vida é feita de escolhas. Concordo parcialmente com a afirmação. Muitas vezes, elas se impõem. Como hoje, por exemplo. Domingo deslumbrante de carnaval, amigos se reunindo para o "esquenta" regado a carne e cerveja (a boca saliva) e eu aqui, sentada em frente ao computador, prá falar de desejos não satisfeitos, da aceitação inevitável do inevitável.
Quando eu era criança, e lá se vão muitos e muitos anos, minha mãe festejava meu aniversário reunindo a meninada da rua onde morávamos e filhos de parentes. Muitas vezes, a data coincidia com o carnaval, como neste ano de 2012. Lembro da mamãe sentada ao piano, tocando marchinhas e nós, a criançada, fantasiados, nos divertindo muito e tomando guaraná em copinhos de papel decorados com desenhos, a mesa posta cheia de docinhos e daqueles espetinhos de salsicha, queijo e azeitona, sanduíches triangulares de paté, servidos em pratinhos também de papel decorado. Havia também a travessa grande com as balas de coco enrolados em papel fino colorido com a ponta cortada em tiras que dava ao conjunto um ar de aplique de cabeça de escola de samba, um delírio para os olhos e para o paladar. E, claro, o bolo com tantas velinhas quanto os anos da aniversariante. Todas as comilanças eram feitas em casa. Do bolo aos docinhos, espetinhos e sanduíches, empadinhas, pasteizinhos e croquetes. Mamãe tocava as músicas de ouvido, ou seja, ouvia, ia para o piano e tirava. Um deleite.
Já adolescente, ia aos bailes do Fluminense. Houve um ano em que fizemos um grupo de índias bem comportadas. Éramos a Vera, a Maria Helena, eu e a Suzette. Deuses, onde andam essas amigas? Comecei a seguir o caminho do teatro, assumi meu lado contestador, iconoclasta, a usar palavrões e já não era mais bem aceita nos lares conservadores que formaram. Lembro de ter sido convidada para um jantar na casa de uma delas que me pediu encarecidamente que moderasse a linguagem prá não chocar o marido. Cumpri o trato, mas não adiantou, nos perdemos de vista. Não me lembro de tê-las visto na platéia das peças em que atuava. Mudei de cidade e não deixei endereço.
Quando cheguei aqui, em Florianópolis, o carnaval fervia na Pça. XV e o ponto de encontro era no antigo restaurante Roma. Que delícia! Eu que já tinha rompido um pouco com o desvario carnavalesco, reassumi o prazer com todo o gosto. Fizemos um bloco lindo, As Meninas do Coronel. Herdei um terno de linho branco do avô da minha filha e me enrolava nele desfrutando das delícias de me travestir durante a folia, sem correr muito o risco de mãos passando na minha bunda, nem de ser abraçada por quem quer que seja. Sempre gostei da liberdade de dançar livre nas ruas, hábito adquirido na Banda de Ipanema, da qual tenho honra de ter participado da sua primeira saída, do antigo Jangadeiros, na Gal. Osório. Abrimos o carnaval, no sábado, eu, de Coronel e as meninas Lola, Angélica Virgínia e muitas outras. Nos outros dias, fui de Margara Marafa, a dona do bordel. A música tema era das Frenéticas, uma que não fez muito sucesso, pelo que diz Sandra Pêra, composta pelo Chico: "o rei pediu quartel, foi proclamada a república nesse bordel" Foi um sucesso! O grupo era paquerado, adulado e estávamos maravilhosas!
Com a violência instalada na cidade, já não saíamos, fui prá fora e na volta, eis que foi fundado o ONODI, bloco do bairro onde morava, que me fez curtir de novo o carnaval. Nele, nas areias da praia do Campeche, festejei a vida celebrando a oportunidade que me foi dada de continuar a respirar os ares do planeta. Tenho dançado muito e me divertido a valer no bloco dos amigos do bairro, companheiros de cervejadas, churrascos e feijoadas, nada muito leve, eu sei, mas "de vez em quando, não faz mal..." Num dos anos, fomos nos banhar no mar depois da festa, mergulho inesquecível. O ONODI tem sido a grande diversão do meu carnaval. Seo Chico, que se foi ano passado, esperava o bloco passar em frente à sua casa, Dona Nicota, Dona Didi, mulher do Arlindo que tinha um botequim na esquina da rua em que eu morava, transformado atualmente em Assembléia de Deus, ou algo similar, todos homenageavam a passagem do bloco, momento de confraternização e reconhecimento dos moradores do bairro, atualmente invadido por prédios, descaracterizando-se passo a passo, mas firme na alegria dos seus habitantes mais fiéis e no trabalho dos seus dirigentes Isolete, Cadico, Paulinho, Milton.
Neste ano, pois é, completo meus muitos anos na terça-feira Gorda. Nem mamãe, nem copinhos de papelão, nem marchinhas de carnaval. As dificuldades de locomoção da cidade aliadas a um probleminha nas articulações do joelho e tornozelo e a uma baixa energética atribuída à véspera do aniversário me obrigam a ficar em casa, olhando o céu, desejosa de estar às gargalhadas no "esquenta", trabalhando internamente a frustração inegável e, de certa forma, agradecida por estar a salvo de dores mais sérias caso insistisse em ir (breve, BEATRIZ volta aos palcos e quero estar tinindo em Itajaí, onde nos apresentaremos), por ser capaz de respirar e aceitar o que não tem como evitar, por ter recebido uma galinácea quentinha trazida pelas mãos gentis do marido que escapou das suas obrigações de filho prá agradar a mulherzinha e por "poder tocar um instrumento", não com a maestria de Caetano ou Chico, mas do jeito que me cabe, que é este.
Legenda da foto: Ah, droga, eu quero ir pro bloco!