Amanhecer no Campeche

Amanhecer no Campeche

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

lixo, luxo, eixo

Sabe aquele dia em que a agonia é maior que a satisfação? Aquele em que se tem vontade de mandar tudo pro inferno, deitar na cama, se cobrir até as orelhas e esquecer que existe vida e que você está nela? Ou então, pegar todos os objetos que fazem parte da sua existência, longa existência, e jogar tudo fora, depois de quebrar em pedacinhos todos eles, transformando-os em cacarecos inutilizáveis, sem validade prá mais nada, a não ser levar com eles todo o significado que tiveram um dia, se é que tiveram?
Pois é, hoje, eu estou assim. Tá difícil suportar a chuva constante, a dosagem homeopática de objetos descartados (arrumação dos CDs. Ouço CDs, sim, não uso MP3, 4, 5 ou 21!), a sensação de sufocamento provocada pela vida que se carrega nas costas, paredes, gavetas, vida cheia de projetos não realizados, projetos realizados, quadros produzidos, lembranças gracinhas, outras nem tanto, roupas que são usadas de vez em quando, mas que não dá prá jogar fora (há que ter um pretinho básico no guarda-roupa!), frases compiladas, livros, ai meu Deus!, livros! Juro que doei um monte deles prá algumas bibliotecas, pelo menos três. Devo ter tirado das estantes cerca de 1000 volumes. Parece pouco? Parece muito? Não sei. Fui atacada por uma alergia que me fez doar obras que não terei mais, nem em edições recentes. Obras que não serão reeditadas, que estavam velhinhas, velhinhas. "Quo Vadis" se desfazia nas minhas mãos quando o reli, não faz muito tempo. Que delícia de leitura! Como deve ter sido difícil para os primeiros cristãos a revolução que provocaram... Mudança de paradigmas profundos. Todos irmãos? Que história é essa?, se perguntavam os romanos cheios de si. Como se identificar com alguém de classe inferior? Os deuses serviam aos homens e eram cultuados para isso, realizar o desejo dos que lhes cultuavam. Fico imaginando como seria isso. Como era ter à disposição a energia de um Ser da dimensão de um Jesus, se contrapondo a deuses de certa forma servis. Trazemos até hoje essa idéia de que a força divina está aí para realizar os nossos desejos e ficamos só pedindo, pedindo, pedindo. Pois é, hoje, estou pedinte, também. Aceito o estado esquisito, estado de intoxicação energética, estado de saco cheio de tantos kilos a mais, de tanta idade vivida, de tantas lembranças, nem todas felizes ou satisfatórias, de um bocado de incompetência minha e dos que estiveram em torno de mim, de risos, sim, momentos deliciosos, momentos de grande serenidade, aqueles em que nem os filhos distantes fazem falta, em que estamos plenamente no agora, em que sentimos que não falta nada, o vazio foi preenchido seja pela oração conjunta, seja pelo lugar especial, seja pelo estado que chegou e se instalou e que é guardado na memória como preciosidade. É, isso existe. Lembrar dessas ocasiões benditas faz com que a agonia se dilua, a chuva se torne a delícia que é quando não é o chicote da natureza sobre nós, seres humanos mal-educados e mal-agradecidos. Lembrar faz com que a respiração ganhe um ritmo mais lento e adocica o olhar sobre os objetos, sobre a vida que eles evocam, sobre a arrumação conseguida. Reduzir, reciclar, compartilhar experiências. Reduzi o espaço em que vivo. Reciclo o lixo que produzo, transformo batiks em bordados, me desfaço daquilo que não é mais essencial. Alguns não foram nunca! Apenas estão aí, fazendo volume, ocupando espaço, transformando a abundância em peso ou desperdício. São assim também as emoções, ressentimentos, mágoas. Já que estamos nesta vida prá aprender e acredito nisso, como nos permitimos a raiva, a negatividade nas relações de aprendizado? Questão difícil. Ihh, ainda há muito caminho prá andar, muito espinho prá tirar dos pés, muita massagem no coração que fica dolorido assim, à toa. Mas, sigo em frente. Resmungo, dou patadas, me arrependo, fico quietinha, passo mel onde precisa, repito o que aprendi, chamo o Zé (nossa, de onde surgiu isso??!!! será que foi por conta dessa expressão que me casei com um Zé?!!!), olho a paisagem da janela, curto o verde, dou uma cafungada no ar que chega da Praia do Riso, lindo e plácido mar que se oferece aos meus olhos e me sinto a própria Januária! Depois, uma retomada no livro que me espera, mais um ponto no bordado que começa, um gole de um chazinho reconfortante para o fígado e pronto, a vida recupera o ritmo com menos frenesi e angústia. Isso é prá quem ainda não sabe. Isso são recaídas indesejadas, inegáveis. Nem sempre a maturidade está disponível, é como se a presença divina se escondesse  e fosse preciso dar um mergulho um pouco mais fundo para resgatá-la. Está feito.
"Como é bom poder tocar um instrumento"...

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